Notícia postada originalmente em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/12/tecnologia/1434103095_932305.html
Todos nós ouvimos dizer alguma vez que quando um produto é aparentemente gratuito é provável que na verdade estejamos pagando por ele com dados. Isso acontece com as redes sociais, os cartões de fidelidade de lojas e supermercados ou com infinitos aplicativos que oferecem serviços mais ou menos relevantes em troca, somente, dos nossos dados pessoais.
Mas além de intuir que nós somos o produto, na realidade não sabemos o que é feito exatamente com nossa informação, ou no que consiste e como funciona esse pagamento com dados. Na verdade, não é uma questão simples e cada aplicativo tem seus próprios procedimentos e lógicas. No caso da navegação na internet, por exemplo, as empresas e prestadores de serviços nos oferecem de forma gratuita seus motores de busca, páginas web e serviços associados para ler o jornal, consultar a previsão do tempo ou estar em contato com outras pessoas através de redes sociais e fóruns. No entanto, cada vez que entramos em uma web é baixada automaticamente uma série de microprogramas conhecidos como cookies que conseguem informações sobre nossa atividade online e enviam ao proprietário da página visitada informações sobre nosso IP, MAC ou IMEI (o número de registro do nosso dispositivo), o tempo e a forma que usamos num determinado site ou outros sites que estejam abertos ao mesmo tempo, identifica se somos visitantes regulares e que uso fazemos da página web, em que sequência, como acessamos outros sites e assim por diante. Além disso, é comum que diferentes empresas paguem ao site que visitamos para poder instalar seus próprios cookies, como também é habitual que a empresa use os dados não somente para seus estudos internos, mas que também os venda a terceiros.
Na verdade, cada vez que visitamos uma página com o computador, o celular ou o tablet, recebemos dezenas de pedidos de instalação de cookies. Somos, portanto, o produto, porque em troca da informação que obtemos fornecemos detalhes sobre nossa atividade online e, frequentemente, dados pessoais como nome e localização, hábitos, cartão de crédito, etc., sobre os quais não temos nenhuma maneira de controlar para onde eles vão. Diante disso, o único recurso de autoproteção é não aceitar cookies e renunciar ao serviço, ou exclui-los sistematicamente do nosso computador, algo tão enfadonho como escassamente útil.
O Facebook, rede social utilizada por mais de um bilhão de pessoas por mês, dispõe dos dados que o usuário deposita voluntariamente nele, mas também faz inferências com base em nossas interações com pessoas e informações, compartilha-as com terceiros e desenvolve um perfil único que permite determinar o que aparece no nosso mural, tanto por parte de nossos amigos como de anunciantes. Todo “curtir” ou registro feito por meio do Facebook gera informações que são analisadas e classificadas por algoritmos tanto para nos conhecer em nível individual quanto como consumidores, para desenvolver perfis sociais para agências de publicidade. O registro continua mesmo que tenhamos fechado a página: a não ser que saiamos manualmente, os cookies do Facebook continuam espionando tudo o que fazemos online.
Se, além disso, instalamos o Facebook nos nossos celulares junto com o seu aplicativo de mensagens, o sistema pode ativar remotamente nossa câmera ou microfone, acessar nossas fotos, mensagens e assim por diante de modo a continuar aperfeiçoando o nosso perfil.
O exemplo de navegação na internet é o mais comum, mas já não é o único protagonista. A mesma implantação de conexões não aparentes e de compra e venda de dados também ocorre quando usamos um cartão de fidelidade de clientes, que relaciona o nosso padrão de consumo com um nome, endereço, muitas vezes alguns dados bancários e as respostas ao questionário que normalmente preenchemos ao solicitar esse tipo de cartão.
Outra área em que a coleta de dados está se tornando cada vez mais importante é o espaço público. Nosso descuidado passeio pelas ruas é cada vez menos anônimo e os sensores que leem os identificadores únicos e a geolocalização dos nossos dispositivos, as câmeras de imagem térmica e de videovigilância, redes sem fios, lâmpadas inteligentes ou sensores de leitura automática de placas de automóveis nos incorporam de forma rotineira a bases de dados públicos e privados que em algum lugar servem a alguém para obter um lucro que não conhecemos nem controlamos.
O espaço doméstico é talvez aquele onde esse monitoramento dos nossos movimentos e rotinas para elaborar padrões vendáveis aumenta de forma mais preocupante: todos os eletrodomésticos inteligentes, do medidor de energia elétrica ao aparelho de televisão, passando pela geladeira, constroem uma rede de extração de dados que quer aperfeiçoar a imagem de quem somos, do que queremos e do que podemos querer. O desafio é ser capaz de se antecipar às nossas necessidades para nos tentar a comprar produtos ou serviços que ainda não sabemos que desejamos. Pagamos duas vezes: quando adquirimos o eletrodoméstico ou pagamos a conta de luz, em dinheiro, e a cada vez que proporcionamos informações, com dados pessoais.
Algumas empresas começaram a explorar a possibilidade de se tornarem data brokers dos cidadãos, uma espécie de corretores de dados que gerenciariam nossa informação, devolvendo-nos parte dos lucros gerados por ela. Que ninguém espere ficar rico: no momento, as empresas que tentam abrir caminho nesse mundo obscuro não pagam mais do que alguns euros por mês em troca de informações tão sensíveis como dados médicos ou bancários. Por enquanto, o verdadeiro dinheiro não está na relação entre os cidadãos e os serviços que coletam dados. A economia dos dados ainda é pouco mais do que uma promessa, da qual até agora se beneficiam muito poucos atores (Facebook, Tuenti, Google, Foursquare, YouTube, etc.), e mais pela febre de investimento do que pelos resultados. Na aurora dessa promessa de negócio proliferam corretores de dados dedicados ao cruzamento de diferentes bases para aumentar o preço de venda dos perfis gerados a partir do cruzamento de informações de atividade online e offline: relatórios médicos, por exemplo, podem adicionar muito valor a um histórico de busca na internet.
Para algumas pessoas, esse cenário não provoca nenhuma inquietude. Pagar com informação própria também abre a porta para a promessa de serviços personalizados e atenção individualizada. No entanto, os corretores de dados não se limitam a cruzar detalhes do que compramos, com quem interagimos e do que gostamos. Esse comércio inclui também, e cada vez mais, relatórios médicos, dados fiscais e de renda ou bancários. O tipo de informação que pode determinar se nos concederão um crédito, se nos oferecerão um plano de saúde mais ou menos caro ou se conseguiremos um emprego. De repente, o preço pago com informações pessoais surge como algo totalmente desproporcionado e incontrolável.
Ao aceitar nos transformar em produto, convém não esquecer que também aceitamos que acabem nos afastando do jogo, escondidos ou ignorados porque o nosso perfil não fornece a solvência, a saúde ou a obediência esperada.
Gemma Galdon Clavell, é doutora em políticas públicas e diretora de pesquisa da Eticas Research and Consulting.